Cães, Imunização

RAIVA: VACINAR É PRECISO

Cão sendo examinado

O agente etiológico da raiva é um vírus RNA de fita simples, envelopado. Assim como os demais vírus envelopados, é frágil e não resiste no ambiente por muito tempo podendo ser rapidamente inativado com desinfetantes, sabões ou calor. Como o vírus é associado com alta taxa de letalidade e infecta os mamíferos facilmente, veterinários devem observar os cuidados pessoais necessários para se manterem imunes. Além dos cuidados pessoais, os médicos veterinários devem assumir responsabilidade social e colaborar com a prevenção de infecções de animais domésticos e de educar a população humana sobre o perigo que a raiva representa para toda a sociedade.

Sabe-se que o vírus é principalmente transmitido pelo contato de saliva do animal infectado com qualquer solução de continuidade epitelial de um mamífero susceptível, portanto, há dois procedimentos fundamentais a serem implantados na estratégia de prevenção da raiva. O primeiro é evitar contato de mamíferos susceptíveis (não vacinados) com outros mamíferos, especialmente aqueles que apresentem possibilidade de morder e que não sejam vacinados contra raiva. O segundo procedimento é manter a vacinação contra raiva atualizada de forma ampla para reduzir o número de susceptíveis. Quanto maior for a cobertura vacinal de uma população, menores serão as chances de disseminação.

Dentre os animais que transmitem o vírus rábico com eficácia estão os morcegos, que por serem os únicos mamíferos capazes de voar, são os que dispersam o vírus por grandes áreas. É indispensável lembrar que os morcegos não hematófagos também podem dispersar o vírus e que podem morder caso se sintam ameaçados. No Brasil há mais de 180 espécies diferentes de morcegos, em sua maioria de hábitos noturnos; embora algumas espécies apresentem atividade crepuscular (https://www.sbeq.net/).

A partir de 2004, no Brasil, cães deixaram de ser transmissores importantes do vírus rábico para humanos (Figura) em consequência da pressão exercida pela vacinação em massa. Isso demonstra ser imprescindível que os cuidados com a vacinação dos animais de companhia sejam cuidadosamente mantidos. Em 2015 e 2016 houve três casos de raiva humana transmitidos por gatos domésticos e um por morcego. Em 2017 houve mais um caso humano transmitido por gato doméstico e cinco por morcegos. Em 2018 foram 11 casos humanos, todos transmitidos por morcegos (https://saude.gov.br/saude-de-a-z/raiva).

É inegável que o papel do poder público associado ao esforço dos clínicos de pequenos animais incentivando e trabalhando para aumentar o número de animais vacinados controla a circulação do vírus entre cães e gatos. A partir de 1973, o Programa Nacional de Profilaxia da Raiva (PNPR) implantou a vacinação contra raiva em todo o território brasileiro e conquistou a confiança dos tutores de animais de companhia. Entretanto, um fato inesperado ocorrido em 2010 foi capaz de macular a confiança dos tutores nas campanhas oficiais de vacinação contra raiva. Naquele ano houve grande número de animais vacinados pela campanha que apresentaram reações adversas, sendo que mais de 25% delas foram graves. Muitos animais necessitaram de atendimento médico veterinário, de internação e alguns morreram. Houve ampla divulgação do fato pela mídia, o que fez com que a campanha fosse suspensa, que as vacinas utilizadas fossem analisadas e que os tutores passassem a rejeitar as campanhas. Ainda em 2010 a análise das vacinas demonstrou que elas continham uma grande concentração de proteína heteróloga, provavelmente responsável pelos efeitos adversos apresentados pelos animais vacinados (Stephano, 2010). No ano seguinte, o Ministério da Saúde adquiriu o máximo de doses disponível no mercado internacional (10 milhões de doses) e as disponibilizou apenas para os estados cuja situação epidemiológica os definiu como prioritários (MA, CE, PE, PI, RN, PB, BA, AL, SE, MS). Dessa forma, as coberturas vacinais de 2010 e de 2011 deixaram a desejar (Ministério da Saúde, 2011). Em 2012, a cobertura também foi aquém do desejado, tanto quena região sudeste, por exemplo, a vacinação alcançou apenas 16% da meta para cães. Nos anos subsequentes a cobertura na região sudeste oscilou, mas finalmente parece se aproximar do desejável (2013 -  60,4%; 2014  - 35,21%; 2015 – 34,99%; 2016 – 64,82%; 2017 – 73,65%) (http://pni.datasus.gov.br/consulta_antirabica_17_selecao.asp).

O esforço do PNPR, apesar dos contratempos, tem controlado a circulação do vírus rábico. Tanto assim que no Brasil o número de casos de raiva humana chegou a zero em 2014. Entretanto, dois anos mais tarde, em 2016, foram diagnosticados 2 casos humanos além de  11 casos caninos e 8 felinos (https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/noticias/?p=241663). Atualmente, casos de morte humana por raiva têm mostrado que o vírus é mais prevalecente em nosso meio do que gostaríamos que fosse. Um rapaz morreu de raiva no estado do Rio de Janeiro após chutar um morcego doente e ser mordido por ele. Uma senhora morreu de raiva na Paraíba, aparentemente após ser mordida por um carnívoro silvestre (https://portalcorreio.com.br/idosa-raiva-humana-mordida-raposa/). Juntamente a essas fatalidades, sabe-se que o número que morcegos infectados pelo vírus rábico no Brasil é grande. Por exemplo, em 2020, no município do Rio de Janeiro, já foram encontrados 12 morcegos não hematófagos infectados pelo vírus (http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/10308893/4290014/TABELA_GERAL_RAIVA_21_07_20.pdf).

Assim, a classe médico-veterinária, em especial aqueles dedicados à saúde pública ou à clínica médica, tem o dever de trabalhar para impedir a circulação do vírus, principalmente entre seus pacientes. A raiva é uma virose evitável pela vacinação. Sabemos que não são raras as invasões de residências por primatas não humanos ou por pequenos mamíferos sinantrópicos. Morcegos hematófagos tem atacado cães em Niterói, RJ com frequência (Mourão, 2020). Carnívoros de todos os portes tem sido avistados nas imediações de loteamentos em ecótones. Assim, mesmo em face ao aparente desaparecimento da participação de cães e de gatos na transmissão do vírus, cada dia mais a vacinação deve ser intensa e as ações educativas incansáveis.



Norma Labarthe

Figura - Taxa de mortalidade de raiva humana por tipo de animal agressor (1986 – 2018)
Fonte: SVS/MS. Atualizado em 16/03/2018

Ministério da Saúde. 2011. Nota Técnica nº14/2011 – CGDT/DEVEP/SVS/MS.

Mourão, G. 2020. Morcegos atacam cães na Região Oceânica de Niterói e deixam moradores assustados. OGLOBO.globo.com em 08/07/2020.

Stephano, MA. 2010.Analise de saponinas e de proteínas das vacinas utilizadas nas campanhas de vacinação no estado de São Paulo em 2010. Relatório. Faculdade de Ciências Farmacêuticas, Universidade de São Paulo.



Norma Labarthe

Norma Labarthe, CRMVRJ – 1394, formada em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Fluminense, fez Mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Doutorado no Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz.
Professora aposentada da Universidade Federal Fluminense, é atualmente professora orientadora do programa de Pós Graduação Bioética, ética e Saúde Coletiva pela Escola Superior de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz.