Cães, Imunização

Doença Respiratória Infecciosa Canina – Patogênese

Doença Respiratória Infecciosa Canina – Patogênese

Como vimos no texto da semana passada, a DRIC possui diversos agentes etiológicos, que podem atuar sozinhos ou combinados, e que apesar de geralmente apresentarem sintomas semelhantes, quanto mais agentes estiverem envolvidos possivelmente mais graves serão os sinais apresentados pelo paciente; e essa coinfecção é bem comum. Dentre as bactérias, a Bordetella bronchiseptica (Bb) é sem dúvida a principal; já dos vírus, o mais comum é o vírus da parainfluenza (CPIV), relacionado a surtos com frequência; o vírus da influenza canina (CIV) e o coronavírus respiratório canino (CRCoV) emergiram a partir dos anos 2000, e são responsáveis por infecções principalmente em cães que vivem em grandes populações.

Nessa revisão trataremos dos principais vírus e bactérias que compõe o painel de agentes da DRIC.

Vírus

Vírus Parainfluenza canino (CPIV)

CPIV é um RNA vírus pertencente à família Paramyxoviridae, encontrado em cães do mundo inteiro e causador de uma tosse aguda, de duração curta mas altamente transmissível, especialmente em animais que vivem em canis e abrigos. Desafios experimentais mostraram que o vírus se replica especialmente no epitélio da mucosa nasal, faringe, laringe, traqueia e brônquios, destruindo esse epitélio, como podemos observar na figura 1.

Figura 1. Microscopia eletrônica mostrando epitélio traqueal canino normal (A) e hipersecreção mucoide e epitélio traqueal canino com cílios destruídos 72 horas após infecção experimental com CPIV. (Foto de Laboratórios Pfizer, Madison, NJ)

A excreção viral persiste de 8 a 10 dias após a infecção, através de aerossóis. Causa tosse aguda limitada, parecida com uma buzina, que se deve ao edema nas cordas vocais. Laringite e traqueíte podem levar a engasgos e expectoração, e pode ocorrer corrimento nasal seroso, tonsilite e faringite. Sem complicações advindas de infecção secundária, a recuperação ocorre entre 6 a 14 dias; importante frisar, porém, que a infecção secundária por bactérias é bem comum, com maior risco para filhotes, e fazendo com que os sinais sejam mais graves e presentes por um tempo maior.

A infecção natural pode levar manutenção de níveis séricos detectáveis de anticorpos por até 3 anos, mas a proteção com vacinas produz principalmente IgA na mucosa respiratória. Importante frisar que a detecção de anticorpos séricos não podem ser correlacionado à proteção contra a doença clínica.

Adenovírus canino tipo 2 (CAV-2)

Tanto o adenovírus canino tipo 2 (CAV-2) quanto o tipo 1 (CAV-1) causam infecção do epitélio respiratório, porém o CAV-2 é o mais presente em cães com DRIC. É um DNA vírus, da família Adenoviridae, causador de laringotraqueíte infecciosa em cães, e podem ter como reservatório canídeos selvagens.

A transmissão é oronasal, através de aerossóis, e o vírus se replica em epitélio nasal, faringe, tonsilas e traqueia. Porém não fica restrito somente a trato respiratório superior, e atinge também linfonodos e células não-ciliadas dos brônquios e pneumócitos tipo 2. O pico de excreção viral é em 3 a 6 dias e é excretado até 9 dias após infecção, diminuindo conforme o nível de anticorpos locais aumentam. Cães não vacinados contra CAV-1 ou CAV-2 estão susceptíveis à doença.

Em casos leves, os sinais podem ser de imperceptíveis a moderados, porém em casos mais sérios, há comprometimento de vias aéreas e pulmão, com bronquite e pneumonia intersticial reportadas em infecções experimentais. Os sinais são mais graves quando há coinfecção bacteriana ou viral, e mortalidade já foi observada em filhotes infectados naturalmente.

Vírus Influenza canino (CIV)

O vírus influenza é um RNA vírus que infecta mamíferos (incluindo seres humanos) e aves, sendo as aves aquáticas seus reservatórios assintomáticos. Possui três subtipos: A, B e C, onde os dois últimos são vistos majoritariamente em humanos. O subtipo A atinge diversas espécies de animais e tem uma capacidade alta para mutações; assim, foi adaptado aos cães à partir de alterações do vírus equídeo H3N8 (originário dos EUA) e do vírus aviário H3N2 (originário da Ásia), pertencente à família Orthomyxoviridae. São vírus envelopados, sensíveis a desinfetantes comuns e susceptíveis a influencias do ambiente, sendo o ideal para sua manutenção temperaturas mais frias e úmidas.

A transmissão ocorre através de aerossóis, podendo também acontecer através de fômites; a replicação e excreção viral ocorrem nos primeiros 4 dias após infecção, e geralmente persistem por até 10 dias. Há inflamação de vias respiratórias e baixo acometimento de pulmões. Os sinais clínicos apresentados são especialmente febre, corrimento nasal e tosse, que persiste por 2 a 3 semanas após infecção. Alguns animais podem desenvolver taquipneia e graves lesões de trato respiratório inferior. Com a vacinação nos países em que a vacina está disponível, foi observado diminuição da gravidade dos sinais apresentados. Após surtos de H3N8 e H3N2 em mais de 30 Estados americanos, o vírus Influenza é considerado um dos principais patógenos envolvidos na DRIC nos EUA.

Coronavírus respiratório canino (CRCov)

O coronavirus respiratório canino (CRCoV) é um RNA vírus, que já foi isolado ou teve evidência sorológica ou genética em diversos países europeus, asiáticos e nos EUA, porém esses achados não têm sido associados com doença clínica. Tem um caráter aparentemente sazonal, com predileção pelos meses mais frios e cães com mais de um ano de idade.

Existe uma lacuna de trabalhos publicados a respeito desse patógeno, e a infecção aparentemente ocorre da mesma forma que os demais agentes da DRIC, através de secreções respiratórias. O período de incubação é curto e a doença geralmente se apresenta de forma subclínica ou leve com tosse, corrimento nasal e por vezes inapetência; quando associada a outros patógenos, parece ter a capacidade de gerar doença clínica de fato, o que ainda tem que ser confirmado. O vírus é identificado em cães naturalmente infectados em especial na cavidade nasal, tonsilas, traquéia e, menos comum, nos pulmões e linfonodos broncopulmonares.

Vírus da cinomose (CDV)

O vírus da cinomose (CDV) ou morbilivirus, é um RNA vírus, que pode causar tosse aguda, com corrimento nasal e ocular, sendo ocasionalmente relacionado à DRIC, e na fase inicial da doença, indistinguível de outras agentes. O trato respiratório não é o alvo principal, e em animais susceptíveis a doença progride rapidamente à morte. É um vírus que leva à pneumonia, e a progressão da doença gera também sinais neurológicos graves, dermatológicos, entre outros.

Outros agentes virais

O herpesvirus canino (CHV) é uma doeça sistêmica grave e frequentemente fatal em cães com menos de 2 semanas de vida, sendo geralmente subclínica ou latente nos adultos. A sua reativação pode causar sinais clínicos de rinite e faringite nesses pacientes, consistente com DRIC; essa recrudescência pode levar a excreção viral intermitente em pacientes sob stress.

Reovírus (CRV) é um RNA vírus, virtualmente capaz de infectar qualquer mamífero, inclusive seres humanos. Os três sorotipos (1, 2 e 3) já foram isolados de trato respiratório de cães com secreção nasal e ocular, mais comum em cães que vivem em grandes populações, porém sem evidência conclusiva de que possa de fato causar DRIC, sendo geralmente encontrado em coinfecções.

Pneumovírus (CnPnV) é pertencente à família Paramyxoviridae, sendo outro possível agente causador da DRIC, que geralmente causa maiores sinais clínicos em cães imunossuprimidos ou com coinfecção por outros agentes, como CPIV e CIV, conforme já publicado. Multiplica-se bem em pulmões, conforme avaliado após infecção experimental, e seus anticorpos já foram identificados em animais saudáveis e doentes, sugerindo uma exposição generalizada e talvez uma patogenicidade questionável.

Bactérias e Micoplasmas

Bordetella bronchiseptica (Bb)

Existe uma série de bactérias que podem ser encontradas no trato respiratório superior de cães, aumentando ainda mais a complexidade tanto da patogênese quanto dos sinais clínicos apresentados na DRIC. Porém, nenhuma das bactérias encontradas é tão importante quanto a Bordetella bronchiseptica (Bb), um bacilo aeróbio gram-negativo. São 9 espécies identificadas de Bordetella, com três sendo capazes de causar doença respiratória: B. pertussis e B. parapertussis, que infectam somente seres humanos, e B. bronchiseptica, que infecta mamíferos no geral, inclusive a nós. A Bb é capaz de atuar tanto como agente comensal quanto como patógeno virulento, sendo portanto um fator importantíssimo da DRIC. Ela é capaz de regular sua virulência através da expressão de genes específicos (que modificam sua colonização, transmissão e sobrevivência), e quando associada às infecções virais (em especial por CPIV ou CIV), atua como complicador do quadro infeccioso, e por isso é comum observarmos diferentes manifestações da doença, desde quadros com sintomas leves até pacientes apresentando pneumonia e óbito.

Alguns estudos forneceram evidências da patogênese da Bb e como ela é capaz de colonizar inocentemente o trato respiratório de cães saudáveis (e também de gatos), e em algum momento, dada alguma influência indefinida, ela é capaz de reconhecer receptores de células epiteliais ciliadas, ligar-se a esses e colonizar essas células, causando danos ao tecido (Figura 2). Após a colonização, a Bb utiliza-se de mecanismos intrínsecos para expressr diversas exotoxinas e endotoxinas, também chamados de fatores de virulência; estes, levam à danos celulares e prejudicam o reconhecimento e eliminação da bactéria pelo sistema imune.

O sistema imune inato atua contra a Bb através de defensinas, peptídeos catiônicos e a formação de anticorpos locais a diversos epítopos da mesma; porém, um bom número de fatores de virulência fazem com que a Bb escape dessa destruição inata, com comprometimento de fagocitose pelos neutrófilos e posterior eliminação das bactérias. Além disso, as endotoxinas podem interagir com os anticorpos locais formados, interferindo na sua ação contra a bactéria.

A indução da ciliostase acontece antes do dano epitelial e produção de secreção mucoide, aumentando a chance de infecções oportunistas. O dano ao tecido vem após essa colonização, resultado da ação de diversas toxinas secretadas.

Figura 2. Foto de micrografia eletrônica de mucosa traqueal mostrando as céulas epiteliais ciliadas com B. bronchiseptica aderida (seta). (Fotografia de Electron Microscopy Lab, College of Veterinary Medicine 2004, University of Georgia Research Foudation Inc.)

S. equi subsp. zooepidemicus

Outras bactérias podem ser encontradas nesses pacientes, sendo consideradas oportunistas, como Streptococcus spp., Pasteurella spp. e Pseudomonas; dessas, S. equi subsp. zooepidemicus já foi isolado como agente primário de DRIC, ficando para as demais a dúvida se agem como agente primário ou de fato apenas secundário em coinfecções. Os sinais clínicos são: tosse produtiva, corrimento nasal, febre, dispneia, anorexia e letargia, além de óbito em alguns casos, podendo ser resultado de broncopneumonia hemorrágica ou sepse. Estudos envolvendo surtos da DRIC desencadeada por S. equi subsp. zooepidemicus mostram que é um agente também importante na patogênese da doença.

Micoplasmas

Micoplasmas ainda permanecem como dúvida se a sua atuação é primária ou secundária em cães, e até mesmo seu papel como patógeno é incerto, pois já foi recuperado do trato respiratório de animais com pneumonia e de animais saudáveis. Diferente da Bb, micoplasmas colonizam células ciliadas e não-ciliadas, sendo encontrados em vias aéreas inferiores com ou sem doença clínica. Tanto em infecções naturais quanto experimentais, há presença de bronquite e bronquiolite purulenta. Pode ocorrer hiperplasia linfoide e pneumonia intersticial, sendo a infecção sistêmica rara. A excreção após infecção pode durar meses, e é muito possível que a coinfecção com Bb torne a doença mais grave. 

Enfim, podemos observar com essa revisão que são muitos os agentes etiológicos que podem acometer os cães, sendo a Bordetella bronchiseptica um dos principais agentes envolvidos. Nas próximas semanas falaremos sobre diagnóstico e tratamento da DRIC. Para mais informações sobre nossa linha de vacinas, acesse https://www.zoetis.com.br/especies/animais-de-companhia/vacinas.aspx

Bibliografia

Greene CE. Infectious disease of the dog and cat - 4th ed

Mitchell JA, Cardwell JM, Renshaw RW, Dubovi EJ, Brownlie J. Detection of Canine Pneumovirus in Dogs with Canine Infectious Respiratory Disease. J Clin Microbiol. 2013 Dec; 51(12): 4112–4119.

American Veterinary Medical Association (AVMA) website – Canine Influenza and Canine Respiratory Coronavirus FAQ