Gatos

Dinâmica da população felina dentro de uma casa

De uma maneira geral, os médicos veterinários clínicos de pequenos animais estão mais acostumados a orientar os tutores quanto ao  suprimento das necessidades de bem-estar de seus pacientes de uma forma individualizada. Essa individualização é fruto do fato de a maioria dos domicílios manter apenas um animal de companhia, além de nossas fontes de aprendizado serem focadas em necessidades fisiológicas individuais dos gatos. Prover a saúde de um grupo de gatos domésticos requer um conhecimento adicional sobre a organização e dinâmica de populações felinas, mais ainda considerando a limitação de recursos e de espaço de uma residência.

A implementação bem sucedida de um programa de assistência à saúde coletiva apresenta desafios. Gatos podem ser mantidos agrupados de diferentes formas e em ambientes variados. Garantir a saúde da população requer um planejamento cuidadoso e adoção de protocolos abrangentes de bem-estar que atendam tanto a saúde dos indivíduos quanto às necessidades do local em que os animais estão sendo mantidos. Abordar apenas a saúde física não é garantia de bem-estar. Por exemplo, um gato pode estar aparentemente bem fisicamente, porém sofrendo de estresse e ansiedade, o que com o passar do tempo se transformará em comprometimento físico. Assim, os cuidados preventivos devem incluir não somente a saúde física individual, mas também os aspectos comportamentais e coletivos.

A avaliação do local em que os animais vivem é extremamente importante quando se considera um programa de bem-estar. Os cuidados com a higiene são fundamentais, principalmente naqueles onde existam vários gatos convivendo de maneira muito próxima e cujos recursos vitais (áreas de alimentação, descanso ou eliminação) sejam limitados. Os objetivos gerais de um programa de saúde e bem-estar para populações de gatos são prover a saúde física e comportamental, além de impedir ou minimizar ao máximo a transmissão de patógenos dentro do grupo. Numa colônia, aqueles indivíduos que passam a apresentar problemas físicos ou de comportamento servem como indicadores dos cuidados e condições de saúde do grupo como um todo.

Gatos são territoriais e marcam os limites de suas áreas privativas por meio de sinais visuais e olfatórios (arranhões nas superfícies verticais, urina, fezes). Adjacente ao seu território privativo há uma “área de lazer” que eles eventualmente compartilham com outros gatos. O tamanho da área privativa está diretamente relacionado à densidade de alimento. Assim, naqueles ambientes onde a oferta de alimento for farta e acessível, o tamanho do território de um gato de vida livre variará de 800 a 8000m². A manutenção das condições sanitárias ou de bem-estar é especialmente desafiadora em ambientes nos quais os gatos são mantidos em grandes grupos. Além disso, as doenças infecciosas e os problemas de comportamento são comuns nos locais que apresentam uma alta rotatividade e fluxo de gatos. A circulação dos agentes infecciosos aumenta quando gatos de idades diferentes e suscetibilidades variadas são introduzidos nas colônias, predispondo ao estresse e, por consequência, problemas comportamentais.

Sabe-se, por exemplo, que o “Complexo Respiratório Felino - CRF” é a doença endêmica mais frequente nas populações de gatos mantidas em áreas restritas e também a mais difícil de se prevenir completamente em uma população com fluxo intenso de animais.Tanto herpesvírus (FHV-1), quanto calicivírus (FCV) são comuns nas colônias de gatos, onde há a presença de animais portadores persistentes e responsáveis pela manutenção dos agentes infecciosos no ambiente. Além dos vírus, alguns agentes bacterianos podemagravar os casos de CRF, como Bordetella bronchiseptica, Chlamydia felis e Mycoplasma spp. A peritonite infecciosa felina (PIF) também é outra doença que é praticamente impossível de erradicar de ambientes superlotados, e casos esporádicos podem acontecer, principalmente em locais que abrigam muitos gatos jovens. Por outro lado, a implementação de programas adequados de saúde preventiva e bem-estar podem limitar bastante a incidência e a gravidade de doenças, mesmo para esses patógenos de difícil controle ambiental.

A aglomeração e a introdução constante de novos gatos (alta rotatividade) são fatores que induzem ao estresse, além de aumentar o risco de introdução de novos patógenos. Sob estresse a morbidade de doenças infecciosas é potencializada. Qualquer circunstância não familiar pode gerar apreensão, ativando os mecanismos fisiológicos de resposta ao estresse, como a ativação do sistema simpático, liberação de cortisol e catecolaminas. Trazer um gato que vivia livre, ainda que com restrição ao acesso a alimentos e abrigo, para um ambiente fechado e povoado por uma colônia organizada pode resultar em desequilíbrio e doença que poderão se manifestar como uma ampla variedade de indicadores de que algo não vai bem: i) vigilância exagerada, ii) sono interrompido, iii) necessidade de se esconder, iv) apatia e, v) perda de apetite, dentre outros. A longo prazo, aqueles gatos intolerantes ou que apresentam maior dificuldade de adaptação às condições de superlotação e limitação dos recursos vitais demonstrarão distúrbios de comportamento, demonstrando medo ou frustração e estarão mais suscetíveis a desenvolver doenças infecciosas devido à imunossupressão provocada pelo estresse crônico.

Antes de se pensar em um programa de medicina preventiva, devemos conhecer a estrutura e a dinâmica populacional dos gatos domésticos. O ambiente e a divisão do espaço físico interferem de sobremaneira na saúde coletiva. Independentemente da área física disponível, o local deve sempre incluir uma área de descanso confortável que  permita aos animais se expressarem naturalmente, livres de medo ou de angústia. O ambiente deve atender tanto as necessidades físicas quanto as necessidades comportamentais e sociais dos gatos. O manejo dos recursos vitais requer ainda o conhecimento do comportamento social dos gatos, pois os arranjos habitacionais diferem de acordo com a idade, sexo, raça, personalidade, experiências sociais e níveis de estresse. Com exceção da caça solitária, os gatos realizam a maioria de suas atividades em grupos sociais estáveis, onde demonstram uma variedade de comportamentos afiliativos, como a defesa do território e os cuidados cooperativos com os mais jovens. Comportamentos afiliativos são aqueles que facilitam a proximidade ou o contato físico e criam um vínculo duradouro entre os gatos. Gatos dentro de grupos harmônicos praticam o cuidado mútuo e o grooming, compartilhando odores que atuam como forma de marcação, reconhecimento, familiarização e desenvolvimento de um odor comunitário que mantém o grupo coeso.

O sucesso na manutenção de um grupo de gatos depende não apenas da seleção de gatos socialmente compatíveis, da área física disponível, mas também da qualidade do ambiente. O local deve incluir oportunidades para os gatos se expressarem de forma natural, onde possam se esconder, brincar, arranhar, escalar, descansar, se alimentar e fazer suas necessidades. Sempre que possível, um mínimo de 1 bandeja sanitária e 1 vasilha de comida e outra de água devem ser fornecidas para cada gato e organizadas em locais diferentes, tomando o cuidado de manter uma distância de pelo menos 0,6m entre as áreas de alimentação, descanso e eliminação. Além disso, o posicionamento deve permitir que os gatos acessem cada recurso por mais de um lado, sem que haja o bloqueio às entradas. Normalmente para grupos de gatos, recomenda-se a utilização de bandejas sanitárias não cobertas, para facilitar o acesso de todos os animais e evitar armadilhas ou emboscadas por outros gatos.

O espaço físico deve ser amplamente aproveitado e enriquecido com prateleiras e caixas que sirvam de descanso e abrigo, colocadas em vários níveis de altura e disposições. A introdução desses itens aumenta o espaço útil e a complexidade do recinto, criando novos nichos, além de separar o ambiente em diferentes áreas funcionais adequadas às necessidades dos gatos. O número de prateleiras e áreas de descanso deve exceder o número de gatos e devem ser organizadas em tantos locais quanto possível. As prateleiras mais simples e menores devem ser separadas por pelo menos 0,6m de distância ou escalonadas em diferentes alturas para garantir uma segregação adequada; enquanto as prateleiras maiores devem ficar disponíveis para aqueles gatos que optarem por deitarem juntos. Nos recintos menores, a instalação de escadas, prateleiras e passarelas é ideal para aumentar o uso do espaço vertical. Já nos recintos maiores, a instalação de torres independentes fornece um espaço adicional e contribui para reduzir funcionalmente a superlotação.

Assim, para que um programa de bem-estar e saúde preventiva seja bem sucedido e abrangente, devemos conhecer a dinâmica populacional felina, considerando todos os fatores que são essenciais na manutenção da harmonia do grupo, como a presença de doenças, controle e prevenção de endo e ectoparasitos, vacinação, esterilização cirúrgica, higiene, nutrição adequada e introdução de técnicas de enriquecimento ambiental. É sabido que a vacinação desempenha um papel fundamental na prevenção e controle de doenças infecciosas, principalmente quando se pensa no coletivo. Os protocolos devem ser estabelecidos levando-se em consideração o risco de exposição, que variará dependendo da composição populacional e do local onde os gatos são mantidos. De uma maneira geral, os protocolos de vacinação são padronizados para todos os indivíduos da colônia, pois o objetivo aqui é a proteção da população como um todo.

Referências

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Turner, DC; Bateson P. The domestic cat: the biology of its behavior. 2nd ed. Cambridge University Press: United Kingdom. 244p, 2000.



Flavya Almeida

Flavya Almeida

Médica Veterinária formada pela UFF.

Mestrado em Medicina Veterinária pela UFF.

Doutorado em Ciências Veterinárias pela UFRRJ.

Professora de Clínica Médica de cães e gatos da UFF.