Cães, Imunização

Protocolos de vacinação para cães mantidos em abrigos

Os cuidados médico-veterinários dedicados a cães mantidos em abrigos devem ser direcionados ao atendimento das necessidades da população residente. Muitas vezes, os animais dividem um espaço físico insuficiente e com condições sanitárias inadequadas. Minimizar a circulação, exposição e transmissão de agentes infecciosos em locais com aglomeração de animais é sempre um desafio. Os cuidados sanitários empregados devem ser voltados para o bem-estar do coletivo e diferem daqueles empregados nos atendimentos individuais, embora o objetivo principal seja manter a saúde dos indivíduos não infectados.

Um abrigo, por definição, é um local de permanência temporária, onde os animais são mantidos até serem adotados ou transferidos para lares permanentes. Entretanto, no Brasil, os abrigos são em sua maioria, locais de estadia prolongada, por vezes até definitiva, onde há introdução constante de novos animais e, consequentemente, uma maior dificuldade no controle de doenças infecto-parasitárias. A assistência médico-veterinária para os cães mantidos sob essas condições é uma necessidade real e absoluta e deve sempre priorizar o bem-estar dos animais. A prevenção de doenças deve ser uma prioridade, assim como o tratamento dos animais. Cuidados de saúde preventivos devem incluir protocolos que fortaleçam a resistência a doenças e minimizem a exposição aos patógenos.

A implementação de protocolos de assistência médico-veterinária nos abrigos é essencial para manter a população saudável, reduzindo a frequência e gravidade das doenças. Nesse contexto, a utilização de vacinas é uma ferramenta fundamental que deve fazer parte de um programa de assistência veterinária preventiva. Protocolos de vacinação voltados para cães mantidos individualmente ou em pequenos grupos nas residências das pessoas não são adequados e nem podem ser extrapolados para as populações de cães mantidas em diferentes composições e em aglomeração. As estratégias de vacinação devem ser especificamente adaptadas, uma vez que nos abrigos há maior probabilidade de exposição a doenças infecciosas, além do fato de que muitos animais ao ingressarem nos abrigos não serem imunes às principais doenças infecciosas evitáveis pela vacinação. Entretanto, não existe uma estratégia única para vacinar animais de abrigo. Os locais devem avaliar o risco de infecções por patógenos e a taxa de rotatividade em suas próprias populações.

Algumas vacinas previnem a infecção, enquanto outras reduzem a gravidade dos sinais clínicos. O Grupo de Diretrizes de Vacinação (VGG) da World Small Animal Veterinary Association - WSAVA (Day et al, 2016) recomenda que os protocolos devam ser personalizados para cada instalação, reconhecendo que nenhum protocolo universal será aplicado a todas as situações de abrigo. Os protocolos específicos de vacinação devem ser feitos sob medida para cada local, sempre com a supervisão do médico veterinário, levando-se em consideração os riscos e benefícios das vacinas, frequência das doenças endêmicas da área, potencial de exposição e recursos financeiros disponíveis. É necessário definir não apenas quais vacinas são apropriadas, mas também quando as vacinas devem ser administradas e quais animais são candidatos à vacinação. Somente as vacinas que demonstram um benefício claro para prevenção de doenças devem ser usadas nos abrigos.

As vacinas essenciais são aquelas que devem ser administradas a todos os cães no momento da admissão no abrigo ou no momento da adoção. Assim, os cães devem ser vacinados contra cinomose (CDV), hepatite (CAV-2), parainfluenza (CPiV) e parvovírus canino (CPV-2). Além disso, sempre que possível, recomenda-se a utilização de vacinas atenuadas (de vírus vivos modificados). A vacinação anti-rábica deve ser realizada a partir das 12 semanas de idade e recomenda-se que seja administrada em um local no corpo diferente daquele em que as vacinas contra CDV, CPV-2 e CAV-2 foram administradas.  O ideal é que as vacinas por via parenteral não sejam aplicadas antes das 6 semanas de idade, embora alguns protocolos vacinais realizados nos abrigos indiquem o início da vacinação a partir das 4 semanas de idade. Os intervalos recomendados pelo VGG são de 2 semanas (em vez de 3 ou 4 semanas) até que o cão atinja 16 a 20 semanas de idade (Day et al, 2016). Se houver documentação inequívoca da vacinação para um animal adulto no momento da admissão no abrigo, não há razão para revacinar com as vacinas essenciais caninas (Tabela).

Vacinas contra leptospirose são indicadas para os animais mantidos em abrigo, uma vez que a exposição às bactérias pode ser considerada alta em ambientes com aglomeração e condições de higiene inadequada. Para cães expostos a risco alto é prudente que se administre duas doses de vacina, com intervalos de 3-4 semanas. Já o complexo de doenças respiratórias caninas ("tosse dos canis”) não é uma doença evitável por vacina e esta deve ser usada somente para auxiliar no manejo da doença (Tabela). Por outro lado, a vacinação contra Giardia sp. para cães de abrigo é controversa. O VGG não recomendada o seu uso; pois estudos conduzidos nos Estados Unidos da América (EUA) demonstraram que não houve diferenças nas taxas de detecção de cistos ou antígenos de Giardia sp. ou na ocorrência de diarreia entre os cães vacinados e não vacinados (Day et al, 2020). Entretanto, animais vacinados apresentaram sinais clínicos brandos e eliminaram menor quantidade de cistos no ambiente, colaborando assim no controle ambiental da protozoose (Greene, 2012).

Muitas das recomendações contidas nos protocolos vacinais para cães mantidos em abrigos são diferentes daquelas aplicadas aos cães que visitam as clínicas com seus tutores. Essas recomendações levam em consideração o uso racional das vacinas e o potencial de alta pressão das doenças infecciosas nos ambientes do abrigo. Outros fatores importantes, como a densidade populacional, ventilação, saneamento, cuidados comportamentais também devem ser igualmente levados em consideração ao se implementar um plano de controle de doenças infecciosas de cães mantidos em abrigos.

Referências

Day, MJ; Crawford, C; Marcondes, M; Squires, A. 2020. Recommendations on vaccination for Latin American small animal practitioners: a report of the WSAVA Vaccination Guidelines Group. Journal of Small Animal Practice. https://doi.org/10.1111/jsap.13125

Day MJ; Horzinek MC; Schultz RD; Squires RA.  WSAVA - Guidelines for the vaccination of dogs and cats. Journal of Small Animal Practice, v.57, 2016.

Greene, EC. Infectious diseases of the dog and dat. 4.ed. Missouri:Saunders Elsevier, 2012.

Labarthe N; Merlo A; Mendes-de-Almeida F; Costa R; Dias J; Autran de Morais H; Guerrero J. 2016. COLAVAC/FIAVAC – Estratégias para vacinação de animais de companhia: cães e gatos. Clínica Veterinária 21: 114-120.

Newbury S; Mary KM. Blinn PA; Bushby CC; Dinnage JD, Griffin B; Hurley KF, Isaza N, Jones W, Miller L, et al. Guidelines for standards of care in animal shelters. The Association of Shelter Veterinarians, 2010. https://www.sheltervet.org/assets/docs/shelter-standards-oct2011-wforward.pdf

Tabela – Recomendações para vacinação de cães mantidos em abrigos*.

Vacina

Protocolo inicial

Revacinação(filhotes)

Revacinação(adultos)

Comentários e recomendações

Cinomose (CDV) + Parvovirose (CPV-2) +Hepatite infecciosa canina (CAV-2) Parainfluenza (CPIV) Vacina infectante (viva modificada), parenteral

Administrar uma dose ao ingressar no local, se possível, uma semana antes da entrada no abrigo

Início entre 4-6 semanas de idade. Repetir em intervalos de 2 a 3 semanas, até completar 16-20 semanas de idade.

Revacinar com uma dose, 2-3 semanas após a vacinação realizada ao ingressar no abrigo.

Essencial e recomendada para todos os cães.

Raiva (vírus rábico) Vacina não infectante (morta), parenteral

Administrar uma dose ao ingressar no abrigo ou ao deixar o local.

Dose única a partir de 12 semanas de idade.

Revacinar com uma dose, a cada 1-3 anos.

Essencial

Seguir legislação vigente e bula dos produtos.

Bordetelose (Bordetella bronchiseptica)

Vacina não infectante (morta), parenteral ou Vacina infectante (viva modificada), intranasal

Administrar uma dose ao ingressar no abrigo.

Início entre 6–8 semanas de idade. Repetir com uma dose 2 semanas depois.

Revacinar com uma dose, 2-3 semanas após a vacinação realizada ao ingressar no abrigo.

Complementar

A vacina é fortemente recomendada na situação de abrigo.

Leptospirose (L. interrogans sorovares Canicola, IcterohaemorrhagiaPomona e Grippotyphosa)

Vacina não infectante (morta), parenteral

Administrar uma dose ao ingressar no abrigo.

Início entre 10-12 semanas, com repetições a cada 3-4 semanas, sendo a última dose após 16 semanas de idade

Revacinar com uma dose, 3-4 semanas após a vacinação realizada ao ingressar no abrigo.

Essencial

Proteção sorovar específica.

*Adaptado de: 1) Day MJ; Horzinek MC; Schultz RD; Squires RA. WSAVA - Guidelines for the vaccination of dogs and cats. Journal of Small Animal Practice, v.57, 2016; 2) Labarthe N; Merlo A; Mendes-de-Almeida F; Costa R; Dias J; Autran de Morais H; Guerrero J. 2016. COLAVAC/FIAVAC – Estratégias para vacinação de animais de companhia: cães e gatos. Clínica Veterinária 21: 114-120. CDV: paramixovírus canino ou vírus da cinomose; CPV: parvovírus canino; CAV-2: adenovírus canino tipo 2; CPIV: parainfluenza vírus canino.


Maria Alessandra Martins del Barrio

Flavya Almeida

 

Médica Veterinária forma da pela UFF.

Mestrado em Medicina Veterinária pela UFF.

Doutorado em Ciências Veterinárias pela UFRRJ.

Professora de Clínica Médica de cães e gatos da UFF.