Cães, Imunização

PRINCIPAIS DOENÇAS INFECCIOSAS CANINAS QUE PODEM SER EVITADAS POR VACINAÇÃO

DESENHO ESQUEMÁTICO DOS VÍRUS PERTENCENTES AO GÊNERO CORONAVIRUS.

As principais doenças infecciosas que acometem cães e que podem ser evitadas de forma eficaz por meio de vacinação são, em sua maioria, aquelas listadas nos guias sobre vacinas como essenciais (core vaccines). Trataremos aqui de cinomose, parvovirose, leptospirose e raiva em função de sua incidência no Brasil ou por sua importância em saúde pública.

Certamente todos já atendemos casos de cinomose ou de parvovirose. Muitos de nós já atendemos pacientes portadores de leptospirose, mas poucos ou quase nenhum de nós já atendeu um caso de raiva. Provavelmente a raiva é a infecção da qual os clínicos de pequenos animais têm mais receio, embora isso não se reflita em cuidados pessoais. Ao entrarmos em contato com um animal infectado pelo vírus rábico a intervenção deve ser realizada rapidamente e, se desenvolvermos a doença, a letalidade é de aproximadamente 100%. Em função do reconhecimento da necessidade da vacinação e dos reforços da vacinação contra a raiva, tanto os médicos veterinários quanto os responsáveis por animais de companhia aprenderam que cães e gatos devem ser vacinados anualmente. Essa era uma recomendação global feita por todas as agências de saúde durante muitos anos. Entretanto, a tecnologia de desenvolvimento e produção das vacinas modernas tem mostrado que não podemos nos acomodar e seguir praticando a medicina veterinária como nossos mestres faziam. No mundo moderno atualização é indispensável. As vacinas mudaram, passaram a ser mais eficazes e nossa preocupação com o bem-estar dos cães aumentou com o passar do tempo. Modernamente o conceito universal de que cães devem ser vacinados anualmente contra tudo, sempre, mudou. Devemos sim vacinar o maior número de cães possível, mas atendendo às recomendações vigentes.

Ao buscar na internet (Google Scholar em 30/05/2020) pelas palavras: i) cinomose ou distemper foram encontrados 83.930 resultados (distemper 82.100; cinomose 1.830), em sua imensa maioria publicados antes de 2010. É provável que a eficácia da vacinação tenha reduzido o interesse por pesquisas envolvendo a doença; ii) parvovirose ou canine parvovirus foram encontrados 32.770 resultados (canine parvovirus 29.900; parvovirose 2.870), em sua maioria publicados antes de 2010 ou trabalhos brasileiros mais recentes relatando surtos ou abordagens terapêuticas. No Brasil parece que a cobertura vacinal contra parvovirose é abaixo do que deveria ser uma vez que ainda há surtos e necessidade de terapia; iii) leptospirose canina ou dog leptospirosis foram encontrados 22.980 resultados (dog leptospirosis 19.400; leptospirose 3.580), com maior distribuição em anos mais recentes, provavelmente pela ocorrência de surtos da infecção ocorridos na América do Norte na década de 2000 e; iv) raiva canina ou canine rabies foram encontrados 37.640 resultados (canine rabies 33.600; raiva canina 4.040) com várias publicações realizadas após 2010. Mais uma vez a preocupação com a ocorrência e com o controle da raiva é evidente.

Cinomose

O vírus da cinomose é altamente contagioso e se dispersa por gotículas oronasais a partir de 7 dias de infecção. Após a infecção de um animal susceptível em poucos dias haverá viremia e destruição de células de defesa. Na sequência o vírus se dispersa por vários órgãos, especialmente respiratório, digestivo e sistema nervoso central (SNC).

Os sinais clínicos da cinomose são variáveis. Dependem de muitos fatores, sempre seguindo o tripé que determina a gravidade de doenças infecciosas. Há que se considerar a virulência do agente etiológico (varia entre cepas do mesmo vírus), a carga infecciosa com a qual o paciente se infectou e o estado imunológico do animal infectado. Portanto, há infecções desde assintomáticas até gravíssimas. Dentre os sinais clínicos mais frequentes estão: febre; tosse; ruídos pulmonares aumentados; fotofobia; pústulas abdominais; diarréia; êmese e letargia, dentre outros. Os sinais clínicos referentes ao SNC costumam aparecer mais tardiamente (após 2 semanas). Os sinais neurológicos geralmente são progressivos e uma vez instalados não regridem. Esses sinais podem ir de pequenas mioclonias até paresias que chegam a impactar no bem-estar dos cães. É importante frisar que a apresentação clínica de cinomose pode incluir outros sinais, muitas vezes impossíveis de serem distinguidos de outras infecções.

Não há tratamento específico, apenas de suporte. O tratamento de suporte deve sempre incluir fluidos e antimicrobianos para conter infecções oportunistas. Dependendo do caso pode-se administrar também oxigênio e suplementação alimentar. Em todos os casos é importante dividir as possibilidades de piora com os responsáveis pelo paciente. Os sinais iniciais podem ser digestivos ou respiratórios, mas podem evoluir para sinais neurológicos.

Assim, como o vírus da cinomose é: altamente transmissível; o diagnóstico da doença é difícil; o tratamento específico é inexistente; e as vacinas de qualidade conferem excelente proteção, é nosso dever vacinar todos os nossos pacientes contra cinomose.

Parvovirose

Parvovirose é, provavelmente, a virose canina com maior frequência em todo mundo. Lá pela segunda parte da década de 1970 o vírus emergiu e se espalhou por todo o mundo, causando uma doença canina de proporções até então inimagináveis. O vírus apresenta resistência de meses até 1 ano no ambiente. Sua capacidade de permanecer viável por longos períodos no ambiente lhe confere alta transmissibilidade. Cães jovens são mais acometidos por serem menos resistentes e por apresentarem alta taxa de mitose nas células do trato digestivo. Células em mitose são o alvo dos vírus, portanto, qualquer outra infecção que exija aumento na velocidade de multiplicação das células aumentará a vulnerabilidade à infecção pelo parvovírus. Dessa forma, especial atenção deve ser dedicada a filhotes tanto em relação à vacinação contra infecções que provoquem lesões gastrintestinais quanto administração de antihelmínticos para eliminar as agressões ao epitélio intestinal. Apesar da ocorrência de diarréia líquida, com sangue, ser suficiente para que parvovirose seja incluída no diagnóstico diferencial, nem todo animal apresentando essa diarréia será um caso de parvovirose. As suspeitas aumentam se o cão for jovem e mais ainda se tiver menos de 6 meses de idade e nunca ter recebido vacina específica. O tratamento da parvovirose é sintomático, deve ser heróico e incluir reposição de fluidos, antimicrobianos para evitar infecções oportunistas e antieméticos.

Parvovirose é uma infecção evitável por vacinação e higiene ambiental, além de sua incidência ser mitigada pela utilização de anti-helmínticos. Quando os 3 métodos de prevenção são utilizados em associação dificilmente ocorrerão casos de parvovirose.

Leptospirose

Vacinas contra leptospirose não são consideradas essenciais (core vaccines) pela maioria dos guias de vacinação internacionais. Isso devido ao fato da infecção não ser frequente em várias partes do mundo, revelando que ou não há risco de exposição dos animais ou que o risco é mínimo. Entretanto, em países da América do Sul nossa percepção empírica é de que a circulação dessas bactérias é expressiva. Apesar de não haver registros sobre a incidência dessa infecção em cães no Brasil, a maioria de nós (~68,3%) reconhece que há casos de leptospirose em nossa prática.

Há vários hospedeiros com potencial para dispersar diferentes espécies de bactérias do gênero Leptospira, entretanto, roedores são os mais considerados. A infecção ocorre pela penetração das bactérias pela pele apresentando solução de continuidade ou por mucosas mesmo íntegras. Assim, o contato com urina de roedores infectados ou com água contaminada por urina de animal que esteja eliminando bactérias viáveis constitui-se em risco de infecção para cães. Embora cães portadores de leptospirose também possam transmiti-las a outros hospedeiros, isso raramente ocorre.

Como logo a seguir à infecção ocorre bacteremia com intensa replicação, os sinais clínicos podem se manifestar poucos dias após a infecção. Embora leptospirose possa cursar de forma subclínica, a apresentação mais frequente é de doença grave. Os sinais iniciais são febre, tremores e dores musculares. Na dependência do sorovar que tenha infectado o cão, com agravamento da doença surgem êmese, diarréia, anorexia, dores musculares intensas, oligúria ou anúria, petéquias ou equimoses, icterícia e melena ou hematoquezia. O tratamento de leptospirose depende da imediata instituição de terapia antimicrobiana, fluidoterapia e suporte baseado nas evidências. O desfecho da infecção dependerá da precocidade da intervenção terapêutica, da resistência do paciente e do sorovar infectante.

Como infecções por Leptospira spp. podem ser fatais independentemente do tratamento instituído, como regiões tropicais e sub-tropicais são as que concentram o maior número de infecções caninas e como o contato com urina ou água contaminadas por Leptospira spp. são as principais fontes de infecção para os cães, a vacina contra leptospirose (Leptospira interrogans sorovares canicola, icterohaemorrhagiae, pomona e grippotyphosa) é considerada como essencial (core vaccine) no Brasil.

Raiva

Apesar de não abrirmos mão da recomendação para vacinação anual de todos os nossos pacientes (exigência expressa na bula das vacinas), pessoalmente costumamos negligenciar o risco de infecções pelo vírus rábico. Entretanto, não devemos nos acomodar uma vez que ainda ocorrem aproximadamente 59.000 óbitos humanos por raiva em todo o mundo (https://www.cdc.gov/rabies/location/index.html). Em 2017 ocorreram, por exemplo, 516 óbitos humanos por raiva na China, 350 no Quênia, 219 nas Filipinas e vários nas Américas, inclusive 5 no Brasil e 1 nos Estados Unidos da América (https://www.who.int/data/gho/data/indicators/indicator-details/GHO/reported-number-of-human-rabies-deaths). Os números mostram que não podemos negligenciar as vacinações contra a raiva, nem de nossos pacientes, e nem de nossos colaboradores. O vírus não parou de circular e a vacinação nos confere proteção!

O vírus afeta o SNC e o período de incubação pode ser longo, variando entre 1 semana e 6 meses. Os sinais clínicos clássicos são compatíveis com as lesões do sistema nervoso. São eles: febre, midríase, êmese, ataxia, disfagia, tremores, paralisia, distonia e alteração de comportamento, entre outros. Assim, não há nenhum sinal patognomônico que ajude a diferenciar de outras enfermidades mais comuns como cinomose ou intoxicações. Logo, apesar de nos centros urbanos brasileiros o risco da infecção ser baixo, a vigilância deve ser continuada. Um animal que viva em andar alto de um prédio e de lá não saia pode ser infectado a partir de morcegos, por exemplo. Não podemos esquecer que todos os mamíferos são susceptíveis à infecção pelo vírus rábico, portanto, um morcego não precisa ser hematófago para estar infectado e ser capaz de transmitir o vírus. Morcegos frugívoros frequentam apartamentos de centros urbanos com mais frequência do que se possa imaginar.

Leituras recomendadas

ACVIM consensus. https://www.acvim.org/Publications/JVIM/Consensus-Statements

Day, MJ; Crawford, C; Marcondes, M; Squires, A. 2020. Recommendations on vaccination for Latin American small animal practitioners: a report of the WSAVA Vaccination Guidelines Group. Journal of Small Animal Practice. https://doi.org/10.1111/jsap.13125

Greene, CE. 2006. Infectious Diseases of the Dog and Cat, 1387pp. Ed.3. St. Louis: Elsevier Inc.

Labarthe N; Merlo A; Mendes-de-Almeida F; Costa R; Dias J; Autran de Morais H; Guerrero J. 2016. COLAVAC/FIAVAC – Estratégias para vacinação de animais de companhia: cães e gatos. Clínica Veterinária 21: 114-120.

Sykes JE. 2014. Canine and Feline Infectious Diseases, 915pp. St. Louis: Elsevier Inc.

Norma Labarthe

Norma Labarthe, CRMVRJ – 1394, formada em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Fluminense, fez Mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Doutorado no Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz.

Professora aposentada da Universidade Federal Fluminense, é atualmente professora orientadora do programa de Pós Graduação Bioética, ética e Saúde Coletiva pela Escola Superior de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz.